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Roldeck.

Júlio Roldão

Quem chega a um dos desertos da Terra e do percurso de cada um, esses lugares sem sombras que não as que os homens projectam, lugares inóspitos onde só resiste vida com a força de uma Welwitschia Mirabilis (a planta que nasce no Namibe sob o nome popular de "polvo do deserto"), quem se faz a essa travessia acreditando que uma única tâmara poderá ser suficiente para aguentar três dias e três noites, está longe de imaginar o que será naufragar à vista de uma praia da margem direita do Mediterrâneo quando a esperança parece já tão perto.
Uma vez, numa peça de teatro, naufraguei improvisando o papel de patrão de costa de uma pequena embarcação que se tinha feito ao mar sobrelotada de passageiros que apostavam tudo nessa viagem para fugir de terrores e de misérias que só adivinhamos nos relatos pobres e insuficientes de alguns jornalistas em certos telejornais.
Numa das indicações de cena dessa peça de teatro, numa das chamadas didascálias, lia-se que os náufragos eram pessoas como nós "em busca um sítio melhor onde fosse possível viver e não apenas sobreviver". Quanto a mim, actor disponível a repetir, todas as doces noites, essa cena do naufrágio, limitava-me, pela repetição inerente ao Teatro, a "resistir à dureza da minha vida real" e a atravessar os meus desertos imaginários.
Eu que tenho entrado e saído de Itália tantas vezes, incluindo durante o tempo da pandemia da Covid'19 (ultimamente de visita a um filho e à respectiva família, entretanto alargada a mais um neto), eu já não sei se consigo indignar-me com as notícias que nos chegam de náufragos que morrem, também em praias italianas, por não entrarem nas quotas que impomos como limite de lotação concedida aos outros.
Perco-me, na relatividade das nossas vidas, a atravessar este meu recente indesejado deserto e a lamuriar a minha própria sombra, deserto e sombra só agora identificados. Agora que vou para velho e tenho nos bolsos várias tâmaras e esta imensa pena de mim.

01.03.2023 09h00mn

No meu deserto

Quem chega a um dos desertos da Terra e do percurso de cada um, esses lugares sem sombras que não as que os homens projectam, lugares inóspitos onde só resiste vida com a força de uma Welwitschia Mirabilis (a planta que nasce no Namibe sob o nome popular de "polvo do deserto"), quem se faz a essa travessia acreditando que uma única tâmara poderá ser suficiente para aguentar três dias e três noites, está longe de imaginar o que será naufragar à vista de uma praia da margem direita do Mediterrâneo quando a esperança parece já tão perto.
Uma vez, numa peça de teatro, naufraguei improvisando o papel de patrão de costa de uma pequena embarcação que se tinha feito ao mar sobrelotada de passageiros que apostavam tudo nessa viagem para fugir de terrores e de misérias que só adivinhamos nos relatos pobres e insuficientes de alguns jornalistas em certos telejornais.
Numa das indicações de cena dessa peça de teatro, numa das chamadas didascálias, lia-se que os náufragos eram pessoas como nós "em busca um sítio melhor onde fosse possível viver e não apenas sobreviver". Quanto a mim, actor disponível a repetir, todas as doces noites, essa cena do naufrágio, limitava-me, pela repetição inerente ao Teatro, a "resistir à dureza da minha vida real" e a atravessar os meus desertos imaginários.
Eu que tenho entrado e saído de Itália tantas vezes, incluindo durante o tempo da pandemia da Covid'19 (ultimamente de visita a um filho e à respectiva família, entretanto alargada a mais um neto), eu já não sei se consigo indignar-me com as notícias que nos chegam de náufragos que morrem, também em praias italianas, por não entrarem nas quotas que impomos como limite de lotação concedida aos outros.
Perco-me, na relatividade das nossas vidas, a atravessar este meu recente indesejado deserto e a lamuriar a minha própria sombra, deserto e sombra só agora identificados. Agora que vou para velho e tenho nos bolsos várias tâmaras e esta imensa pena de mim.